quinta-feira, 25 de março de 2010

“Mas tu és um anjinho, mesmo, heim?” ou sobre como se tornou bonito ser feio


Sabe quando você não tem mais certeza de algo que antes lhe era uma convicção plena? Talvez você já tenha passado por isso. É uma sensação estranha. Senti isso uma vez, de forma acentuada, quando me roubaram um carro. Pensei, confuso, “mas eu tenho certeza de que o estacionei exatamente aqui!”. Depois busquei alternativas: “talvez eu o tenha estacionado em outro lugar”. E, por fim... a realidade: “a casa caiu”!
Bem, o fato de o carro não estar mais lá, não anula o fato de eu realmente tê-lo estacionado naquele lugar. Então, ficou a certeza: eu realmente o havia deixado ali. Mas ela de nada adiantou...
Por que escrevo isso? É um paralelo. Há, noutras proporções, forte afinidade entre este fato e outros, sociais, cotidianos, aos quais estamos expostos diariamente. A certeza de que algo deveria ser de tal forma, mas, inapelavelmente, mudou! É o caso, por exemplo, da cortesia, da educação informal, da seriedade de propósitos, da honestidade em diversos graus e da equidade de tratamento.
Vejamos: quando eu era um garotinho, ensinaram-me que o que se deveria buscar como ápice da realização como ser humano, como cidadão, era: ser educado, polido, justo, equânime, honesto e trabalhador. Claro, acreditei. E creio que o mesmo aconteceu com você. E continuo acreditando. Mas...
Bem, a realidade: ser educado e polido, em dias atuais, tornou-se antiquado, caiu em desuso e seu uso, por vezes, implica em situações constrangedoras. Não raro se ouve, percebe-se ou se sente reprovação às boas maneiras. Ou será que você jamais ouviu um comentário do tipo: “fulano é tão educadinho que parece um ‘boiola’”? Mais que isso, educação, hoje, parece ser associada a submissão e o seu contrário, a arrogância, parece ter adquirido aura de superioridade – desejável e cultuada indissimuladamente. E ainda mais: para piorar, se se usa de educação, diligência, atenção para com o sexo oposto, confunde-se-o com “segundas intenções”.
Equanimidade? “Isso morde?”. Não, mas deveria, em alguns casos! O mundo se tornou uma arena em que se é “cada um por si” e, nessa seara, não sobra espaço para a justiça e a equanimidade no trato social. “Primeiro eu!”. “Eu posso, você não pode”. E pior: Exige-se, mas não se dá a contrapartida. São uma miríade de ‘deuzinhos’ ávidos por serem cultuados, adorados, idolatrados, mas sem nada a oferecer em troca, senão a gratificante benesse de sua venerável presença diante de nós. Affffff...
Honestidade... honestidade! A maior perda de todas no tecido social. “Jeitinho”. “Quebra-galho”, “dar-se bem” viraram o norma. A violação punível é a honestidade. Punível em mais de um âmbito: paga-se ao perder as melhores oportunidades por falta de “esperteza” e paga-se por não ser esperto: “Mas tu és um anjinho, mesmo, heim?!”. Como se a abstenção à prática da esperteza fosse um ilícito penal punível com a reprovação social, velada ou não.
E quanto à figura do homem trabalhador, que vence com seus esforços, com o suor de seu rosto, honestamente, produzindo e poupando? Foi substituída pela máxima: “Quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro”. Nada mais a conjecturar!
Havia, décadas atrás, a figura da ‘ovelha negra’, cercada por brancas, coagida por olhares de censura e reprovação. Hoje as posições se inverteram: a ovelha branca ocupa o centro das atenções reprovadoras. Sustenta-se sobre um cadafalso.
Tornou-se bonito ser feio. E feio ser bonito.
Mas então papai e mamãe mentiram? Não... Eles só não contavam com a degeneração maciça destes valores em tão pouco tempo, motivada, principalmente, por mudanças culturais aceleradas pelo dirigismo consumista. Afinal, ‘deusinhos’ consomem mais roupas de marcas famosas, veículos caros e aparelhos celulares de última geração, já que têm de ostentar o poder de sua glória infundada.
Entretanto, não é porque o carro não está mais lá, que ele não deveria estar. Terem-no roubado não significa que ele não deveria ter permanecido onde estava! E perder a consciência disso significa sucumbir no cadafalso.
Bem, talvez não seja tão ruim! Quem sabe, com tal sucumbência, as ovelhas negras não se matem umas às outras (estão em vias de!) e dêem espaço para o surgimento de uma nova geração de brancas?



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